domingo, março 30, 2014

O CALENDÁRIO


Ruinas da cidade de Machu-Pichu
(imagem retirada da Internet)

Estas recordações referem-se ao tempo em que eu tinha entre quatro e seis anos. Era curiosa e viva, interessada pelas letras e pelos desenhos, mas ainda não sabia ler.
Vivia numa aldeia pequena e pobre, e passava muito tempo naquele quarto simples, porque estava doente e era Inverno. Fazia frio lá fora e chovia, e a minha mãe não me deixava sair, para não piorar.
Decorria então o ano de 1960, não havia televisão, e o rádio só chegaria a casa de meus pais na minha adolescência. Não tinha muitas coisas para me despertar o interesse pelas letras, apenas um jornal regional que o meu pai assinava, e as caixas dos medicamentos que tomava para as doenças de criança.
Como ainda não sabia ler, só via os desenhos das letras e, curiosa, perguntava à minha mãe que letra era aquela e aquela e a outra e a mãe ia respondendo:
- É um A, um E – e por aí fora.
Até que um dia o meu pai chegou do trabalho com um embrulho comprido e estreito, desembrulhou-o e pendurou-o na parede do meu quarto. Fascinada, passei a admirar por longas horas, aquele objeto misterioso, brilhante, cheio de números e letras. Tinha várias folhas, que o meu pai ia mostrando e em cada folha, imagens misteriosas de altas montanhas e casas muito estranhas, feitas de pedras e sem telhados.
Entre as casas, ruas que subiam e subiam pelas montanhas, também feitas de pedras e torres, muitas torres com degraus enormes. Mas não havia ninguém naquelas casas e naquelas ruas, como seria viver naquele local misterioso?
O tempo passou e fui melhorando enquanto via o calendário sempre pendurado na parede do quarto e ia fazendo perguntas que os meus pais respondiam como sabiam. A minha mãe dizia-me o nome dos números e das letras, o meu pai contava-me que aquelas imagens eram de uma antiga cidade em ruínas, onde há milhares de anos, tinham vivido pessoas que pertenciam a um povo chamado Os Incas.
O que também me chamava a atenção era o nome do calendário, porque aquela palavra que tinha duas partes, separadas por um grande pneu, a minha mãe não sabia ler.
O meu pai, que era motorista de camião, explicou-me que aquelas palavras eram a marca de pneus, e que se liam Gudiare, mas o que me fascinava era a história da cidade antiga, que aprendi que se chamava Machu-Pichu.
O calendário permaneceu pendurado naquela parede alguns anos, até eu ir para a escola. Depois de aprender as primeiras letras, consegui ler sozinha o nome da cidade e a marca dos pneus. Agora sabia que era Good-Year e que não era português. Mas só alguns anos depois soube que o significado daquelas palavras era «Bom Ano».
E na verdade foi um bom ano, curei-me da doença, passei a ir à escola e os sonhos tinham começado a germinar na minha mente. Na escola havia um armário no átrio, que tinha dentro das portas envidraçadas, alguns tesouros que eu cobiçava. Eram livros de histórias, os primeiros que via e ambicionava poder ler. Logo que a professora autorizou, li o primeiro. Chamava-se «O Ladrão de Bagdad». Tinha desenhos e histórias admiráveis de ladrões, príncipes e princesas. E tinha locais misteriosos e longínquos também, onde se passava a história.
Assim passei a sonhar em visitar aqueles locais quando fosse grande e ajudar a decifrar os mistérios de antigas civilizações. Escrevia redações onde expressava os meus desejos e que os professores incentivavam, aconselhando os meus pais a prosseguirem os meus estudos.
Nos anos da adolescência e juventude, passei a estudar História do mundo e das antigas civilizações e os sonhos voltaram em força. Como admirava os arqueólogos, os historiadores, os exploradores de selvas virgens, os descobridores de mistérios! Ah, ser arqueóloga, que desejo! Mas nem fazia ideia como tornar possível esse sonho!
Quando descobri como frequentar as bibliotecas públicas, passei a ser uma leitora compulsiva! Lia coleções inteiras de livros juvenis, depois de aventuras, depois de mistérios, dramas, romances, quanto mais misteriosos mais me inflamavam a imaginação ardente!
Os meus pais desejavam que fosse professora, mas acabei por estudar num curso comercial, para arranjar um bom emprego! – diziam os meus pais.
Consegui o tal emprego, e com os meus primeiros ordenados passei a comprar livros de mistérios, muitos livros que devorava e colecionava. Namorei, casei, tive filhos, passei a viver uma vida de classe média nos subúrbios de uma grande cidade. Quando saía do emprego passava na livraria em frente, à procura do último livro de ficção científica publicado! Lia, lia muito! Sonhava, sonhava muito!
Até que um dia...descobri, cansada de ler... os olhos estavam fracos! Custava-me focar as letras...passei a escrever! Escrever os sonhos dos outros e alguns dos meus também!
Já era agora uma mulher adulta e madura, os filhos estavam crescidos, os sonhos armazenados, ainda à espera de uma última oportunidade, e abri a minha caixa de e-mails.
Uma pessoa amiga tinha-me enviado uma música dizendo ser única e rara! Ouvi com toda a atenção! Um descendente dos Incas tocava, numa flauta, uma melodia misteriosa e comovente, acompanhado de uma orquestra, ele era o solista!
Enquanto ouvia aquela música, na minha alma renasceu o sonho! Voltei à infância! Revi as tardes e os dias que passava olhando pela janela do meu quarto, as andorinhas nos ninhos na velha casa em frente, a chuva a cair, o gelo acumulado na janela, e aquele calendário!
Machu-Pichu, os Incas, a cidade misteriosa! Os desejos de ser arqueóloga, exploradora, viajante! Sonhos de criança, sonhos pueris! Ou não? Mas os anos passaram, tantos já! Será que ainda é possível o resgate de alguma parte dos velhos sonhos?

Arlete Piedade Louro

Publicado no livro " ERA NO TEMPO DE...Crónicas de Outras Épocas"


Sem comentários:

Enviar um comentário